17.3.05

Em defesa do "Velho do Restelo"

Lá vos digo que ha fadigas,
Tantas mortes, tantas brigas,
E p'rigos descompassados,
Que assi vimos destroçados.
Pelados como formigas."
A mitologia oficial dos heróis dos Descobrimentos é logo aqui posta a nu.

Também Sá de Miranda (1481-1558), exprimiu semelhantes dúvidas sobre as vantagens de manter as possessões no Oriente, na famosa Carta a "António Pereira, senhor do Basto, quando se partiu para a Côrte co a casa tôda"(Edição Sá da Costa):
Não me temo de Castela,
donde inda guerra não soa;
mas temo-me de Lisboa,
que, ao cheiro desta canela,
o Reino nos despovoa.
Sá de Miranda, humanista, homem conhecedor da Europa e do que se passava no seu tempo, sentia o Oriente como causa de decadência do Reino.

Quando Camões escreveu os seus Lusíadas, havia já uma grande contestação ao modo como D. João III tinha dado prioridade à Índia, em comparação com o abandono de algumas das possessões africanas. lembremo-nos que, em parte, as posições do Velho do Restelo seriam as posições do próprio Camões, pois este insta D. Sebastião, no início e no fim dos Lusíadas, a fazer guerra em África contra os mouros (um resquício ainda do espírito de Cruzada e dos ideais de Cavalaria), aliás também partilhados, por exemplo, por Gil Vicente, no final do Auto da Barca do Inferno (os Cavaleiros mortos em África que vão directos para a Barca da Glória).

Em conclusão, o Velho do Restelo não representa uma opinião reaccionária, contra o progresso, mas apenas, uma opinião, bastante ancorada na sociedade portuguesa quinhentista, que duvidava, por diversos motivos, das vantagens da aventura oriental, das conquistas no Índico, chegando-lhe a atribuir as causas da decadência de Portugal. No eloquente discurso (cheio de processos retóricos que remontam a Homero) do Velho do Restelo, misturam-se as ideias de um Humanismo antibelicista, abrindo excepção a este antibelicismo à guerra com os Mouros.

Por isso não chamem Velho do Restelo àqueles que se opõe ao progresso ou que são, pura e simplesmente, refractários ao progresso, pois do que se trata aqui é de uma diferente avaliação do deve-haver da aventura imperial na Índia.

Post-scriptum. Esta entrada foi sugerida pela contínua audição, em diferentes circunstâncias, da expressão "Velho do Restelo" no sentido que eu contesto aqui.

Post-scriptum 2. O que eu digo aqui nem sequer prima pela originalidade, pois os programas do 10º ano (não estou a falar do actual), já pediam aos alunos para relacionar o Episódio do Velho do Restelo com o Auto da Índia. Todavia, o problema é que a expressão cristalizou o seu sentido.